Anemia Falciforme (1)

Objetivo:
A alta prevalência de anemia falciforme em nosso meio e a elevada morbimortalidade por infecções associada a esta condição estimularam a realização deste artigo de revisão.
Fonte de dados: Realizamos uma revisão bibliográfica no banco
de dados MEDLINE no período de 1986 até 2003. Foram encontradas
cerca de 600 referências sobre o tema, sendo selecionados 35 artigos,
os quais, aliados a capítulos de dois livros-textos, compuseram esta
revisão.
Síntese dos dados: Neste artigo, além de informações gerais a respeito da doença falciforme, são abordados alguns tópicos sobre as infecções mais freqüentemente observadas no paciente com anemia falciforme, assim como a profilaxia medicamentosa e imunizações disponíveis.

Conclusões:
Esta é uma revisão que visa fornecer à comunidade pediátrica informações sobre o binômio anemia falciforme e infecções, a fim de minimizar suas complicações nesta comunidade específica.
J Pediatr (Rio J). 2004;80(5):347-54: Anemia falciforme, infecção,
penicilina, imunização.
0021-7557/04/80-05/347
Jornal de Pediatria
Copyright © 2004 by Sociedade Brasileira de Pediatria ARTIGO DE REVISÃO
Anemia falciforme e infecções
Sickle cell disease and infection
Dayana V. P. Di Nuzzo1, Silvana F. Fonseca2

A doença falciforme
Doença de caráter genético, descrita pela primeira vez em 1910 por Herrick1,2, freqüente, mas não exclusiva, em indivíduos de origem africana, é originada por uma mutação no cromossomo 112 que resulta na substituição de um ácido glutâmico pela valina na posição 6 da extremidade N-terminal na cadeia ß da globina, dando origem à hemoglobina S. Os eritrócitos cujo conteúdo predominante é a hemoglobina S assumem,
em condições de hipóxia, forma semelhante à de uma foice daí o nome falciforme , decorrente da polimeriza ção da hemoglobina S3,4.

Os glóbulos vermelhos em forma de foice não circulam adequadamente na microcirculação, resultando tanto em obstrução do fluxo sangüíneo capilar como em sua própria destruição precoce. Este mecanismo fisiopatológico acarreta graves manifestações clínicas, com maior freqüência após os 3 meses de idade (Tabela 1)3. Durante os 6 primeiros meses de vida, esses indivíduos são geralmente assintomáticos devido aos altos níveis de hemoglobina F1.
O gene da hemoglobina S é um gene de alta freqüência em toda a América, e no Brasil é mais freqüente nas regiões sudeste e nordeste5. Na África Equatorial, 40% da população é portadora, e a doença falciforme atinge uma prevalência de 2 a 3% da população1. As hemoglobinopatias constituem
uma das principais e mais freqüentes doenças genéticas que acometem seres humanos; e, dentre elas, a anemia falciforme é a doença hereditária mais prevalente no Brasil5,6, chegando a acometer 0,1 a 0,3% da população
negróide, com tendência a atingir parcela cada vez mais significativa da população, devido ao alto grau de miscigenação em nosso país5. De fato, estudos populacionais têm demonstrado a crescente presença de hemoglobina S em indivíduos caucasóides6.
348 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5, 2004

Tabela 1 - Manifestações clínicas da doença falciforme
Adaptada1,2,4
Vaso-oclusão
Necrose avascular da medula óssea (crises álgicas/síndrome mãop
é/necrose da cabeça do fêmur)
Filtração esplênica alterada (aumento do risco de infecções por
germes encapsulados)
Fibrose esplênica progressiva
Osteomielite
Síndrome torácica aguda
Vasculopatia cutânea (úlceras crônicas)
Priapismo
Retinopatias proliferativas
Acidente vascular encefálico
Acometimento renal (tubulopatia/insuficiência renal crônica)
Seqüestro de glóbulos vermelhos (agudo ou crônico)
Crescimento e desenvolvimento puberal atrasados
Hemólise
Anemia (Hb entre 6 e 9 g/100 ml)
Hiperbilirrubinemia, icterícia e pigmento biliar Expansão da medula óssea
Crise de aplasia induzida pelo parvovírus humano B19
A porcentagem de mortalidade entre crianças menores de 5 anos com anemia falciforme é de cerca de 25 a 30%, e a maioria das mortes neste grupo é secundária a infecções fatais, seqüestro esplênico ou crises aplásticas2.
Embora as maiores taxas de mortalidade ocorram nos 2 primeiros anos de vida, a inclusão obrigatória da pesquisa de hemoglobinopatias no exame de triagem neonatal (teste do pezinho) vem demonstrando ser um passo importante para a diminuição dessas taxas, pois permite a identificação precoce desses indivíduos e a conseqüente introdução de profilaxia adequada e seguimento ambulatorial regular2,4,6.

A atual expectativa de vida para a população americana com anemia falciforme é de 42 anos para homens e 48 anos para mulheres7,8. Embora muito superior aos 14,3 anos de 3 décadas atrás, esta ainda se encontra muito aquém da expectativa de vida para a população geral, o que evidencia
a necessidade de maiores investimentos e progressos no tratamento desses pacientes7.

O diagnóstico laboratorial da anemia falciforme é feito através de eletroforese de hemoglobina, focalização isoel étrica ou cromatografia líquida de alta performance (HPLC). As cadeias ß globínicas são etectáveis em fase precoce da vida fetal, a partir da 10ª a 12ª semana de gravidez, o que possibilitaria o diagnóstico pré-natal da anemia falciforme3.
A doença falciforme manifesta-se em indivíduos homozigóticos para a hemoglobina S e em combinação com outras hemoglobinas anormais, o que pode resultar em oença falciforme com diversos graus de gravidade: coheran
ça com um gene da hemoglobina C (SC), um gene da ß+ talassemia (SAF), ou um gene da ß° talassemia (SF), em ordem decrescente de freqüência3.

Doença falciforme e infecção
As infecções são as complicações mais freqüentes nos indivíduos com anemia falciforme1.
Observa-se, na primeira infância, uma esplenomegalia decorrente da congestão na polpa vermelha pelo seqüestro de eritrócitos falcizados nos cordões esplênicos e sinusóides, que evolui com a formação de trombose e infartos,mculminando com a atrofia e fibrose do órgão. Este fenômeno,
denominado de auto-esplenectomia, ocorre geralmente até os 5 anos de idade7,8. Entretanto, mesmo antes da autoesplenectomia, a capacidade fagocítica mediada por opsoninas e a produção de anticorpos são afetadas em conseqüência da persistente agressão esplênica9, levando à
asplenia funcional, que se torna permanente em torno do sexto ao oitavo ano de vida10.

Como conseqüência da asplenia, haverá uma maior susceptibilidade a infecções por organismos encapsulados, notadamente o Haemophilus influenzae tipo b (Hib) e o pneumococo10,11. O risco de infecção por este último em crianças com anemia falciforme menores de 5 anos é
aproximadamente 30 a 100 vezes maior que em crianças saudáveis10. Essas infecções, acompanhadas de acidose,hipóxia e desidratação, podem desencadear e/ou intensificar as crises de falcização, já que favorecem a produção de citocinas inflamatórias, aumentando, assim, a expressão
das moléculas de adesão endoteliais e a adesão das células falciformes e dos polimorfonucleares no endotélio vascular.
Nessas condições, forma-se um círculo vicioso perigoso